Essa tal qualidade de vida
Os anos 90 insistiram numa ideia que virou sonho de consumo
de todo mundo: qualidade de vida. Até hoje dá vontade de entrar numa loja e
perguntar:
- “Tem qualidade de vida?”
Provavelmente nos responderiam que está em falta, muita
procura, mas pode deixar encomendado.
Qualidade de vida, se pudesse ser filmada, teria a cara de
um comercial de margarina. Família bela e saudável, uma casa aconchegante, um
dia de sol, café da manhã farto, papai empregado e filhos na escola.
Qualidade de vida é um modelo de comportamento, qualidade de
vida é um carro com um bagageiro enorme.
E a qualidade das nossas emoções? Compra-se também. As mais
fortes são as que têm mais saída. Tudo pelo preço de um ingresso de cinema.
As pessoas têm estado cansadas demais para produzir seus
próprios sentimentos. Assustadas demais para olhar para dentro. Confusas demais
para reconhecer seus medos e desejos. Passivas demais para transformar tudo o
que sentem em ativo. Procuram artigos prontos em vez de fabricá-los.
Qualidade não vem com facilidade, não conquistamos com um
estalar de dedos.
Qualidade, essa palavra difícil de conceituar, só se
consegue fazendo as coisas com amor, e eu mesma não me suporto dizendo uma
coisa tão piegas, mas é que a pieguice tem lá seu cabimento e, às vezes, exige
nossa rendição. Não há qualidade sem tratamento, sem olho atento, sem uma bela
intenção.
Qualidade é tudo o que a gente ordena sem precisar gritar, é
a maneira educada com que nos relacionamos com as pessoas, é o cumprimento de
nossas tarefas com responsabilidade, é o compromisso que estabelecemos com a
gente mesmo de fazer as coisas da maneira menos estabanada.
Qualidade é a verdade dos fatos, é não teatralizar a vida. É
reconhecer-se humilde diante das nossas falhas, tantas. E tentar errar menos.
Qualidade é viver de acordo com nossas possibilidades,
administrar a vida com a humanidade de que dispomos, chorar de ódio por sermos
vulneráveis, mas pensar que melhor isso do que não termos sensibilidade alguma.
Qualidade é amor que se sustenta, é amizade que não é um
blefe, é confiança que não é traída, é demonstrar o que se sente, apertar a mão
com firmeza, dizer não e dizer sim com a mesma honestidade, é a inocência de
uma fé generalizada e crença na própria natureza.
Parece uma oração, eu que sou quase agnóstica. Mas é isso.
Qualidade é tudo o que não se desmancha facilmente.
Martha Medeiros
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